Pete Docter transforma uma crise existencial em uma obra sobre aproveitar a vida em sua plenitude, que impressiona pela ambição visual enquanto mantém foco na simplicidade.
Depois de lançar Divertida Mente, projeto ao qual ele dedicou muitos anos e que foi recebido muito positivamente tanto pelo público quanto pela crítica, o diretor Pete Docter, hoje Chefe Criativo da Pixar, foi tomado por uma pergunta: O que eu faço agora?
Esse questionamento levou o diretor de Monstros S.A. e UP: Altas Aventuras, hoje com 52 anos, a uma espécie de crise de meia-idade. Ele passou a se perguntar se fazer filmes animados seria o seu propósito no mundo. E, claro, transformou essa busca por sentido na vida em uma animação.
Soul acompanha a vida de Joe Gardner, um professor de música que morre quando está prestes a realizar seu maior sonho: ser um músico de jazz bem sucedido em Nova York. Se recusando a desistir, sua alma vai parar em um lugar etéreo, em outro plano de existência, onde as almas são treinadas, adquirem personalidade, e então vêm para a Terra, nascer.
Ele conhece 22, seu exato oposto, uma alma que se recusa a nascer. Juntos, eles vão tentar levar Joe de volta para seu corpo antes da hora do show dele com o quarteto de Dorothea Williams, figura importante no cenário musical de Nova York.
É um filme, sobretudo, ambicioso, e não só na temática de discutir o significado da vida, mas de se propor a representar visualmente morte, nascimento, construção de personalidade, sonhos, ansiedades e tantos outros aspectos inerentes à vida na Terra.
Potência visual
Logo nas primeiras cenas no Mundo das Almas, Soul apresenta uma habilidade que Docter já mostrou que dominava em Divertida Mente: a capacidade de materializar até os conceitos mais abstratos. É um espetáculo visual: o Pré-Vida tem aspecto etéreo, com uma textura suavizada, quase que borrada, em cores frias e agradáveis. Já o Além é intimidador, imponente, preto no branco como se dissesse de forma clara e direta: acabou.
Uma pequena nota: Os Zés, personificações do universo que comandam esses lugares, roubam a cena sempre que aparecem. O estilo 2D inspirado em esculturas de arame faz eles se destacarem sempre, mostrando como a Pixar consegue combinar, harmonicamente, estilos diferentes de animação.
Nos ambientes do plano espiritual, a Pixar esbanja a criatividade que é marca registrada do estúdio na concepção de cenários como a Escola da Vida, onde as almas são ensinadas a procurar sua missão, o Salão de Todas as Coisas, onde elas podem conhecer mais sobre a vida na Terra e a Viagem, um espaço entre o mundo físico e espiritual que as pessoas conseguem atingir quando se conectam fortemente ao que amam.
Como contraponto, as sequências em Nova York trazem uma outra perspectiva para a animação. Na cidade, Soul exibe todo avanço das tecnologias de animação da Pixar, emulando as ruas, avenidas e até o metrô com um realismo que beira a perfeição, desde as calçadas lotadas, à iluminação do Sol e de ambientes internos.
Representatividade
Joe Gardner é o primeiro protagonista negro da história da Pixar, e uma dimensão importantíssima do filme é toda a construção da comunidade dele. Graças ao trabalho do codiretor Kemp Powers, dramaturgo trazido para colaborar com o roteiro, ele parece uma pessoa real, e não uma tentativa de englobar toda uma comunidade em um personagem só. Joe tem suas particularidades ao mesmo tempo em que está inserido em algo maior, ele é relacionável e autêntico.
Outro ponto incrível é ver que o filme apresenta personagens etnicamente diversos e corpos de vários formatos, fugindo de um padrão específico e dando espaço para personagens que verdadeiramente lembram pessoas reais, e não ideais irreais. Além disso, temos presença forte de personagens femininas, em diferentes posições na vida do protagonista.
Viagem musical
A trilha sonora de Soul funciona em duas dimensões: Em Nova York, o filme é embalado por arranjos de jazz de Jon Batiste, pianista e líder da banda Stay Human. Com talento de sobra, ele vai dos momentos mais eufóricos do filme, com músicas mais aceleradas, até os mais emocionantes, com notas suaves que parecem consolar.
Do outro lado, no Mundo das Almas, a trilha composta por Trent Reznor e Atticus Ross potencializa a experiência etérea, dando um ar místico e misterioso ao lugar. Com essas duas propostas, a música situa o espectador e, mais do que isso, complementa as temáticas sobrenaturais e emotivas, quando as palavras não são suficientes.
A Pixar fez de novo
Com tantas ambições visuais e temáticas, Soul se coloca como o projeto mais ousado e maduro da Pixar, já que mesmo com as piadas sempre presentes e com a presença de cenas mais divertidas, ambas focadas em entreter as crianças, toda experiência reflexiva que ele propõe deve falar mais diretamente com os adultos.
O filme pede que você olhe para a vida de outra forma, sem se utilizar de condescendência para dizer como você deve vivê-la. Para balancear todas as pretensões visuais e temáticas, o roteiro aposta na simplicidade suave, característica de UP: Altas Aventuras, com um terceiro ato onde a emoção é sentida de forma mais real do que calculada.
Por não ter medo de se arriscar e mirar ainda mais alto, a Pixar consegue atestar que sua criatividade não mostra sinais de desgaste e ressaltar o poder inegável das coisas simples da vida. Soul é um filme de emoção poderosa, em que o visual e a música são um espetáculo à parte e a narrativa dialoga suavemente ao que há de mais belo em viver. É um abraço apertado depois de um ano como 2020.
Soul
Ano: 2020
Direção: Pete Docter, Kemp Powers
Elenco: Jamie Foxx, Tina Fey, Angela Bassett, Phylicia Rashad, Questlove, Alice Braga e Graham Norton.
Sem medo de correr riscos, Soul olha para a experiência humana com excelência visual, narrativa e musical, sem esquecer que os detalhes e as coisas pequenas do cotidiano importam tanto quanto os maiores sonhos.
Nota: 5/5
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